CULTURA TRADICIONAL DA INFÂNCIA
Muitos já se referiram às brincadeiras antigas, aquelas passadas de geração a geração, como brincadeiras de rua ou brincadeiras tradicionais. A educadora e musicóloga Lydia Hortélio, inspirada no vasto levantamento que os compositores Bartók e Kodály realizaram sobre a música da cultura infantil da Hungria, iniciou, já na década de 80, por meio de uma metodologia própria, o levantamento, documentação e, posteriormente, a difusão e a recriação desse repertório da cultura infantil do Brasil. Cunhou, assim, o termo Cultura Tradicional da Infância. No vasto repertório recolhido por ela, por Lucilene Silva, por Adelsin e outros pesquisadores da Casa das Cinco Pedrinhas – além de tantos e atuais pesquisadores da Cultura da Infância existentes hoje, no Brasil –, é possível documentar e analisar diferentes categorias de brincadeiras, estruturas rítmicas e melódicas, jeitos, gestos e formas de brincar para cada período do desenvolvimento da criança. E mais: esses brinquedos são produzidos pelas e para as crianças. É a cultura das crianças, é o corpus de conhecimento que elas mesmas produzem.
Essa pesquisa sobre a infância, porém, já havia sido iniciada muitas décadas antes. Florestan Fernandes fez, na década de 40, uma pesquisa inédita: “As Trocinhas do Bom Retiro: contribuições ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis”. Nesse estudo, realizou uma etnografia das crianças residentes em bairros operários da cidade de São Paulo em suas brincadeiras de rua, nomeadas por ele de “trocinhas”. Observou como as crianças se relacionavam entre elas, como se organizavam e construíam regras e, principalmente, como se apropriavam dos contéudos presentes nessas brincadeiras. A pesquisa foi de grande impacto, especialmente porque Florestan Fernandes destacava a importância de se estudar o folclore que era, assim, revelador da cultura brasileira e continha, em si, um caráter essencialmente humanista².
As pesquisas da Cultura Tradicional da Infância são, dessa forma, a continuidade dos estudos iniciados por Florestan Fernandes. Lydia Hortélio e Lucilene Silva destacam, em suas publicações e entrevistas, a diversidade e a grandeza das músicas, histórias, brinquedos e brincadeiras tradicionais. Assim como o Brasil é diverso, os brinquedos dos meninos do Brasil também são, e todo esse universo cultural tem sido perpetuado ao longo dos séculos. É, nas palavras de Lucilene, “ao mesmo tempo tradicional, popular e contemporânea, pois sofre transformações, se adequando a cada novo tempo, sem perder a essência. Incrivelmente ampla, abrange acalantos, brincos; histórias; adivinhas, trava-línguas, quadrinhas, fórmulas de escolha; rodas; amarelinhas, jogos, pegadores; brincadeiras com bola, corda, elástico, mão, pedra e o objeto brinquedo.”¹ A criança brasileira é colocada por esses pesquisadores no cerne, no ponto central de análise, no lugar de protagonista, de produtora de saberes, de conhecimento e de cultura. Para se conhecer a criança brasileira, é preciso olhar para as brincadeiras por elas produzidas e difundidas.
Lydia Hortélio nomeia as representações contidas nos brinquedos infantis de “Brasil encoberto”. Algumas músicas são nitidamente de herança indígena, outras são ibéricas e outras, africanas. No entanto, a matriz cultural mais presente no repertório cantado é, não à toa, a portuguesa. A essa matriz elementos africanos e ameríndios foram ricamente agregados. Outro rico elemento é revelado nos brinquedos dos meninos: os fluxos imigratórios. “Elementos das culturas infantis italiana, alemã, espanhola, francesa, inglesa, americana, japonesa, síria, libanesa, turca, judia, polonesa, holandesa, se misturaram a nossa, tornando-a ainda mais rica e diversa.”²
A Cultura da Infância revela um universo mítico do imaginário brasileiro. No ritmo, na narrativa, na melodia, no conteúdo e nos gestos, encontramos as matrizes culturais do povo brasileiro. Nos brinquedos da infância, reconhece-se o Brasil.
Se estudarmos a cultura popular compreendendo que, ali, o Brasil está encoberto, puxaremos o fio do novelo que está ali. A educação do Brasil deveria caminhar por aí, não como um regionalismo, mas como algo muito mais profundo e digno de conhecimento. As crianças procedem por uma construção de conhecimento que não é pelo raciocínio lógico, não é a compartimentalização. Com elas, é uma consciência de inteireza, em que o sentir, o pensar e o querer fazem parte de uma unidade.
Lydia Hortelio para Instituto Tear³
É, no brinquedo, que se conhece a infância e que se conhece a matriz cultural de um povo. É, no brinquedo, também, que se aprendem as regras, as formas de convívio, de negociação, de diálogo, de divertimento. E mais: é brincando, cantando e dançando que compreendemos e perpetuamos o que também nos constitui enquanto povo brasileiro.
Referências:
¹SILVA, Lucilene. Música tradicional da infância in A música na Escola. São Paulo: 3D3, 2012.
² FERNANDES, F. “As Trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico dos grupos infantis”. In: FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. 2 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1979.